terça-feira, 5 de novembro de 2024

Felipe e seus irmãos


Foto: Felipe Locanto ao vencer a Forja dos Campeãos de 2011 / Alessandro Michel


“Aqui não é local para playboy”, “ele não vai conseguir”, “é só uma brincadeira”, essas e outras falavas eram escutadas muitas vezes em baixo tom, mas algumas em alto também, enquanto o boxeador amador Felipe Locanto, acompanhado por seu irmão Giuliano e seu técnico Alex “Pit” Cardoso, assistia as rodadas da Forja dos Campeões de 2011 na arquibancada de cimento e pintura desgastada do Ginásio Baby Barioni, em São Paulo.

Avistei o trio ao chegar, um treinador de boxe os apontou para mim e falou em tom de desprezo da empreitada deles; eu já conhecia Cardoso, o havia entrevistado e no que nossos olhos fizeram contato, ele me chamou pelo meu nome e com um aceno pediu que eu me aproximasse deles, então fui apresentado aos irmãos, enquanto Cardoso me elogiava para eles exaltando o meu trabalho cobrindo boxe e a educação que me foi dada pelos meus avós. Na próxima semana Locanto estrearia.

Diferente do encontro anterior, o clima estava sóbrio no vestiário, apesar do trio sorrir ao me ver, não havia espaço tampouco intimidade para brincadeiras. As paredes claras com o chão revestido de azulejos em tons pastéis aumentavam a sensação de frio do lugar.

Alex é um rapaz com uma pele levemente bronzeada, como a de alguém que se sente à vontade na praia, cabelos negros, ombros largos, antebraços rijos, com olhar e falas rápidas. Seu carisma combinado com sua seriedade ajuda a entender sua credibilidade junto aos seus clientes que em geral são de classes mais abastadas. Alex sabe transitar entre diferentes ambientes como me apontou seu antigo treinador e campeão mundial Miguel de Oliveira (1947 – 2021), enquanto comíamos uma pizza em Santa Catarina.

Mais afastado ficava Giuliano, cabelo castanho escuro, barba por fazer, altura próxima da dos outros dois, postura de senador romano, jaqueta azul marinho cobrindo a camiseta preta, enquanto os olhos castanhos e arredondados circulavam boa parte do ambiente já que suas costas estavam voltadas para a parede, uma posição de quem quer ver aqueles que entram e saem. O boxe apesar de saudável e revigorante atrai algumas personalidades com as quais se precisa ter cautela, e Giuliano percebeu que eram estranhos em um novo ambiente.

Trajando uma regata branca e um calção branco com faixa lateral preta, Felipe moveu a cabeça para a esquerda e sorriu ao me ver, então voltou a se concentrar em sua respiração, enquanto Alex preparava sua bandagem e lhe passava as instruções finais ao mesmo tempo que pedia minha atenção no combate vindouro. Em posição ereta, o peito do jovem boxeador enchia e esvaziava vagarosamente, os olhos que são contentes pareciam adormecidos, quase opacos, não como o de alguém que está próximo da hora de dormir, mas como os de um atleta que entra num espaço que poucos frequentam ou mesmo conhecem, uma espécie de transe.

Os traços faciais dos irmãos lembram as estátuas de uma Roma Antiga, enquanto a linguagem corporal tem a elegância de pessoas que não fazem do dinheiro seu mote de vida e o usam como ferramenta tanto que não esquecem suas origens no sul da Itália, na cidade de Catanzaro, com homens acostumados com o trabalho físico e maneiras humildes.

Alex passava as faixas nas mãos de Felipe com a habilidade e a calma de um escultor, há toda uma técnica envolvida que feita errada pode desclassificar o atleta e assim aniquilar os seus sonhos. As pessoas pensam que é só enfaixar as mãos dando voltas quando na verdade serve para a proteção dos pulsos e das juntas que unem os dedos e as mãos. Os olhos de Felipe seguiam em outro lugar, tamanha é a confiança em Alex.

Dentro do ringue, Felipe mostrou bom movimento de pernas que usou com propriedade para impulsionar a movimentação de seu tronco, ajudando a desferir cruzados e golpes no torso com potência e precisão, além de ajudá-lo a manter a distância ideal do adversário. Alguns dos críticos tinham feições de surpresa mesmo que buscassem disfarçá-las, outros perceberam que aquele que seria o "azarão" da categoria podia trazer sérias dificuldades aos seus atletas.

Foto: Felipe Locanto / Alessandro Michel

Conquistando seu território

 

O desenvolvimento nos fundamentos do boxe com Alex Cardoso guiou Felipe Locanto para a final da Forja dos Campeões, torneio realizado desde 1941 e que viu terem campeões como o “Galo de Ouro” Eder Jofre e Adilson “Maguila” Rodrigues. Conforme progrediu, o pugilista que trabalha como arquiteto dissipou as dúvidas de suas qualidades no ringue.

Enquanto se preparava para sua grande noite, Felipe, assim como seu oponente William Costa e outros pugilistas, foi surpreendido no dia 5 de abril ao ser informado de que a final da Forja não seria realizada nas dependências do Conjunto Desportivo Baby Barioni, sendo que o veterano dirigente da Federação Paulista Newton Campos (1925 – 2022) teve de reorganizar o desfecho no Ginásio do Pacaembu no dia 12 do mesmo mês.

A mudança repentina afetou os atletas financeira, física e psicologicamente. Felipe representava a L.B.B.A., enquanto William Costa defendia as cores de Bauru em busca de um título inédito para a cidade.

Enfim, Felipe e William se encontraram no ringue, e o que se viu foi um rito de passagem deles. Enquanto Felipe é conhecido pela proeza técnica, explosão e força física, do outro lado tinha um atleta mais baixo, o que lhe rendia melhor centro de gravidade, e também dotado de maior força física.

Entre os torcedores se tinha mais amigos e parentes de Felipe do que nas outras noites, Alex coordenava as ações do atleta, enquanto Giuliano os auxiliava no corner.

Antes do combate pude conhecer as dependências da L.B.B.A. e seus atletas. Porém para a final, Alex elevou o grau de dificuldade de Felipe o levando para fazer sparring fora de seu círculo, em ambientes nos quais os pugilistas tratam as sessões de treino como combates por campeonatos tanto que ao verem Felipe acreditariam que ali poderiam descontar seus problemas com o mundo, mas o jovem saiu-se vitorioso.

O resultado da ousadia de Alex com os irmãos se viu no ringue, além dos atributos consolidados como a técnica apurada, a explosão e a força física; a esquiva e o jogo de corpo de Felipe melhoraram exponencialmente, o fazendo atuar como se fosse mais leve que um peso meio-pesado.

Após o árbitro erguer o braço de Felipe, Alex ficou eufórico, o que raramente se vê; Giuliano sorriu mais do que o habitual, já os amigos e parentes eclodiram nas arquibancadas como pessoas que se veem num momento livres dos problemas que as afligem e compartilham o sentimento de serem eles mesmos no quadrilátero.

Newton Campos premiou Felipe como o lutador mais técnico do campeonato, prêmio que raramente dava. Os pugilistas se abraçaram respeitosamente, pois dividiram um momento que foi apenas deles, muito intenso, mas que também sabiam que dificilmente se veriam em outra oportunidade.

Raramente me aproximo de entrevistados e pessoas das quais faço perfis, até por uma questão de imparcialidade. Porém aconteceu com Felipe, Giuliano e Alex. Apaguei um perfil previamente de Felipe acreditando que escreveria algo melhor, mas hoje vejo o meu erro porque não deveria ver como um trabalho artístico, mas como um registro daquelas noites de 2011 e de seus personagens. Com o tempo me afastei e precisei de mais de uma década para escrever esse perfil.

O que Felipe Locanto fez naquela noite vai um tanto além de um álbum de memórias guardado em um canto da casa ou em uma pasta de computador, o pugilista que projeta casas e prédios além de tocar piano mostrou a capacidade do boxe de abraçar pessoas de diferentes meios e origens. 

Foto: Alexsandro "Pit" Cardoso, Felipe Locanto e Giuliano Locanto / Arquivo Pessoal.

Nota do editor: Esse texto é uma retificação do passado, mas o blog não voltará a ser atualizado. Obrigado por sua audiência.